terça-feira, 21 de julho de 2009
...
domingo, 5 de julho de 2009
quinta-feira, 25 de junho de 2009
SEM PÉ NEM CABEÇA
E aprendi que o dia tem vinte e quatro horas. Que as horas faltaram às aulas de ética e não aprenderam a conta de divisão. Que elas não são justas na hora do pagamento. As horas precisam acordar para a realidade!
E aprendi que a hora tem sessenta minutos. Como já vivi sessenta anos, para saber quantos minutos vivi, precisaria de uma baita conta. Nunca fui boa em conta, principalmente de multiplicar.
E aprendi que cada minuto tem sessenta segundos. Ah! Esse, sim, merece uma atenção especial. Num segundo pode acontecer:
- a viagem de ida e volta de um olhar;
- um grande amor a se viver;
- uma culpa a dividir;
- a lágrima de uma dor.
Pois não é que o segundo são as vogais da vida? Exceto o u, que é feio e cheira a fim. Fim de festa. Fim de um amor. Fim do fim de semana. Fim da linha. Fim da vida. Fim de um conto, sem pé nem cabeça.
domingo, 21 de junho de 2009
NA NOITE ETERNA
A luz penetrava através de uma fresta e um raio incidia diretamente sobre a sua cabeça que, longe de encontrar o repouso necessário, teimava em voltar às lembranças de um passado morto, mas nunca enterrado. Para piorar, fazia um calor terrível e alguns bichinhos incômodos insistiam em lhe percorrer o corpo, causando-lhe cócegas e comichões. Tentou afastá-los, mas os braços, pesados, recusaram- se a ajudá-lo. Pensou em fechar os olhos bem forte quando percebeu que estes já estavam fechados, as pálpebras imóveis, sem um tremorzinho sequer. Achou que a madrugada ia avançada e que logo amanheceria sem que ele tivesse adormecido. Já estava pensando em se levantar, ir até à cozinha, tomar algo, quem sabe um copo de leite quente, um chá de camomila, ou mesmo um copo d’água, quando ouviu vozes. Coloque aqui mesmo, assim está bom, dizia uma voz feminina. Ainda estava pensando naquela voz, como sendo de alguém conhecido, quando sentiu uma dor nas costas, como se tivesse caído em algo duro. Não era de hoje que estava precisando deixar a preguiça de lado e procurar um ortopedista, as dores o estavam incomodando cada vez mais e ele naquela de deixar pra lá. Aquietou-se, tentou novamente deixar que o silêncio da noite o envolvesse, procurou afastar os pensamentos incômodos, deixou as mãos juntinhas, uma sobre a outra, as pernas espichadas, os pés voltados para o teto, numa posição que, segundo lhe ensinaram, era propícia ao descanso e ao sono. Estava tão quieto que nem respirava. Ficou assim, imóvel, por um bom tempo, sentindo o silêncio da noite, esperando a hora bendita em que todos os sentidos se recolhem, restando ao corpo entregar-se aos braços de Morfeu. O último ato consciente veio do olfato. Um cheiro de flor invadiu o ambiente e fez com que ele se lembrasse do pé de dama-da-noite, plantado no quintal da casa. Não durou muito e ele já estava sonhando, um sonho estranho como costuma ser a maioria dos sonhos. Sonhou que o filho mais velho abria a porta e dava-lhe um beijo na testa, enquanto algumas pessoas observavam a cena, entre elas amigos e vizinhos. Viu a filha sentada numa cadeira, a observá-lo, como, ainda menina, o fizera naquela noite que ele preferia esquecer e que fazia parte do passado morto, mas nunca enterrado. A filha era parte das lembranças que não o deixavam dormir em paz. Sentiu vontade de ir até ela, abraçá-la, mesmo sabendo que ela se encolheria, como um bichinho indefeso se encolhe diante do predador. Não teve tempo para o abraço, pois a figura da filha foi-se distanciando, dando lugar a uma procissão de figuras, algumas estranhas, outras não tanto, entre elas, duas que lhe pareceram familiar. Aproximou-se. Na frente da procissão, o pai o olhava como se o estivesse esperando. Atrás dele, a mãe, com os braços pendendo ao lado do corpo e um olhar que ele conhecia muito bem. Aquele olhar tinha o poder de fazê-lo se encolher como uma presa frágil diante do predador. Fez força para acordar, uma vontade imensa de voltar à realidade onde ele sabia poder controlar os fantasmas. Ao invés disso, continuava ali, parado, o corpo se recusando a qualquer movimento. Está na hora, disse alguém e ele procurou de onde vinha a voz, devia ser de alguém na procissão. As pessoas começaram a andar, e ele ali, esperando, desta vez deitado de costas, as mãos juntinhas, uma sobre a outra, os pés voltados para o alto, tão quieto que nem respirava. Foi quando sentiu que caía cada vez mais fundo, mais fundo, como naqueles pesadelos que costumava ter quando criança e acordava todo molhado de suor e de urina. Ouvia o som de algo sendo jogado sobre ele, uma, duas, três, quatro vezes, até perder a conta. A escuridão envolveu-o por completo. Como quem acorda de um pesadelo, ele conseguiu levantar-se e, num último esforço, alcançou a procissão que, em silêncio, seguia para um lugar que ele nem imaginava qual seria.
domingo, 14 de junho de 2009
CÁFTEN - 1
A primeira vez que o vi foi num dos pontos onde sou mais vulnerável. Ele desceu do ônibus. Percebi logo a que viera, já estava acostumada a ler os olhos de quem chega. Recebi-o como sempre recebo todos. Alguns chamam a isso de disfarce. Eu chamo de dicotomia. Encanto e medo. Sou isso.
Deu alguns passos, sondou o ambiente. Saiu dos corredores lotados e se aventurou. Tudo nele denunciava a origem. Gestos, olhares, bagagem. O sol batendo forte no rosto, ousou levantar os ombros e se convencer de coragem. Ao descer da calçada, um carro em alta velocidade quase o arrasta. Recuou. Envergonhou-se. Olhou para os lados sem jeito.
Era preciso ir. E ele foi. Fui com ele. Confesso que estava intrigada. Havia-lhe nos olhos algo que raramente eu via nos olhos dos tantos milhares que chegavam. E ainda chegariam. Tinha certeza, aquele era diferente. Estava curiosa.
Tirou um papelzinho do bolso. Leu. Olhou em torno. A placa estava ali, visível: Pensão Rodoviária. O familiar acendeu-lhe um brilho tímido nos olhos. Sentiu-se em casa. Entrou.
O homem do balcão recebeu-o enfastiado. Conversa rápida, deu-lhe a chave e ele subiu a escada. Alívio. O quarto pequeno, cama, armário, uma cadeira. Não reparou a sujeira, a poeira, a cupinzada comendo a madeira caindo de velha. Era a primeira vez que se via fora de casa. Agora dentro.
Descansou por algumas horas, a cabeça na saudade, no medo, na esperança. Acabou dormindo de cansado que estava. A noite chegou e ele resolveu dar uma volta. Antes, tomou um banho no banheiro no fundo do corredor. Água quente, queimando de tão pouca. Trocou a roupa de viagem. Ele nunca vira tanta gente junta. Tanta luz a doer-lhe os olhos. Ali perto, uma carrocinha de cachorro-quente atiçou-lhe a fome, lembrou-se de que estava sem comer há horas. O engulho no estômago havia cessado. Enfiou a mão no bolso. Apalpou. A carteira devia estar ali. Mas onde? No bolso de trás, filho, coloque no bolso de trás que é lugar apertado e tem botão.Ele deu falta do botão e da carteira. Com ela, dinheiro, documentos, endereços. O engulho no estômago voltou, desta vez mais forte. Agora era a fome, a raiva, o desespero. Como pagaria o quarto? O que comeria? Onde dormiria?
Poucas vezes li o que li nos olhos dele. Acompanhei-o na perambulação a esmo. Tantos voltariam à pensão, explicariam, tentariam. Mas ele não, ele apenas rodou à toa, feito bicho acuado. Naquela noite, dormiu com fome. Eu o acolhi da melhor maneira, ofereci-lhe meus lugares mais seguros, mais resguardados. Foi só um tempo. Alguns dias. No dia seguinte a alguns dias de fome, frio e raiva, ele notou a primeira mulher escorada num poste. Percebeu-lhe a intenção. Chegou-se. Essa foi a primeira. Depois dessa, a segunda...a terceira...a quarta...
Foram muitas. E ainda são. Mas a melhor, a mais desejada, a mais rentável sou eu. Isso porque ele ainda não me conquistou totalmente.
Não lhes disse que ele era diferente? Nunca me engano quando leio os olhos de quem me procura.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
VESTIDO DE NOIVA
Na placa se lia “Vende-se”. A moça parou e confirmou o anúncio do jornal.
_ É aqui mesmo - gritou ela para o homem ao volante do carro. Ele sorriu, ela subiu os cindo lances de escada que a separavam da porta. Tocou e ouviu a campainha soar lá dentro, como um aviso. Escutou ruídos no interior da casa. A maçaneta girou, a porta se abriu e um rosto de mulher apareceu.
_ Oi – mostrou o anúncio – é aqui mesmo?
_ É – respondeu a mulher do outro lado da porta - entre.
Ela entrou. A sala era pequena, aconchegante. Nos sofás em tom pastel, mantas de franjas coloridas conferiam um ar alegre e folclórico ao ambiente. Nas mesinhas de centro, cachepôs coloridos exibiam exemplares de orquídeas raras. No aparador, vários porta-retratos. Um deles chamou a atenção da visitante, um casal numa pose alegre e despretensiosa. Ela reconheceu a mulher que lhe abrira a porta. O rapaz, com certeza, seria o noivo. Ou marido. Automaticamente, os olhos se desviaram para a mão, à procura da aliança. Nada. A voz cortou os pensamentos
_ Sente-se, por favor, vou buscar.
Ela se sentou, incomodada, sentindo-se descoberta nos seus pensamentos. Daí a pouco, a mulher entrou sobraçando uma grande caixa de papelão. Ela levantou-se, ajudou a afastar o vaso de orquídea de uma das mesas para dar lugar à caixa.
_ Aí está.
Esperou que a mulher abrisse a caixa. Um, dois, três segundos. Nada.
_ Abra.
_ Eu?
_ Você.
Ela obedeceu, meio sem jeito, era tudo tão esquisito. Levantou a tampa, depositou-a no único lugar vago que encontrou, o pedaço de chão junto à mesa. Com dedos trêmulos, pegou duas bordas de pano e começou a levantar. O vestido foi se abrindo em rendas, bordados e pregas até se tornar uma cascata branca a iluminar a sala e os olhos da visitante que se abriam, extasiados, acompanhando o movimento do pano. Por fim, o vestido suspenso no ar tirou-lhe o fôlego.
_ É lindo - conseguiu dizer.
Olhou a mulher e nada nela combinava com o sentimento de êxtase que a dominava. Obrigou-se a dominar o entusiasmo.
_ Vai mesmo vendê-lo?
Nova espera, desta vez por uma resposta.
_ Sim.
- E quanto você quer por ele?
_ Em dinheiro?
Ela não entendeu.
_ Em dinheiro, nada.
Desta vez, ela não teve dúvidas, ouvira bem.
_ Nada?.
_ Nada. Nem um centavo.
_ Então você vai doar, é isso- tentou brincar – vou ganhar meu vestido de noiva.
O semblante da outra continuou impassível. Ela, cada vez mais sem achar lugar, sem o que dizer, o que pensar.
_ Você pode levá-lo. Com uma condição.
_ Condição???.
_ Sim.
_ Qual?
_ Eu vou ao casamento.
_ Meu casamento?
_ Sim.
Era tudo muito estranho!
_ Por que você quer ir ao meu casamento?
A mulher ignorou a pergunta.
_ Aceita?
_ Espere um momento.
Ela levantou-se, foi até o carro, conversou com o noivo. A mulher esperava com paciência de anos. Ela voltou.
_ Você pode assistir ao casamento. Pode ir à festa, se quiser.
_ Outra coisa.
O que seria desta vez?
_ Quero me sentar na primeira fila, na igreja.
_ Mas é o lugar dos padrinhos!
_ Não importa, faça de conta que sou uma madrinha.
A situação estava ficando cada vez mais complicada. E aí? Aceitava? Não aceitava? Olhou para o vestido na mesinha. Imaginou-se nele. Tinha certeza, ficaria linda! Ela queria aquele vestido.
_ Tudo bem! Aceito.
Levou o vestido e deixou data, hora, endereço.
Não contou a ninguém o preço do vestido, só ela e o noivo que estranhou a segunda condição, mas nada disse porque sentiu o entusiasmo da noiva pelo vestido e não queria desapontá-la.
Chegou o dia do casamento. A igreja lotada esperava a entrada da noiva. Na primeira fila, do lado dos padrinhos da noiva, uma mulher que ninguém ali conhecia. O cerimonial tentou conversar com a noiva, seriam educados com a mulher, explicariam que era um casamento e ali era o lugar dos padrinhos. Mas a noiva foi firme, a mulher podia ficar ali. Não entenderam, mas obedeceram.
A cerimônia foi linda, a presença estranha daquela mulher não conseguiu tirar o brilho da noiva, linda num vestido quase mais lindo que ela. A recepção correu tranqüila, o cerimonial atento a qualquer situação que pudesse estragar a festa, mas nada. Nenhum penetra, nem mesmo a estranha mulher.
Alguns meses depois, uma noiva apareceu com o jornal na mão.
_ É aqui mesmo?
_ É – disse a mulher.
_ Entre e sente-se, vou buscar.
A mulher apareceu com a caixa. A noiva esperou.
_ Abra!
_ Eu?
_ Você.
Era o vestido de noiva mais lindo que ela já tinha visto.
_ Quanto?
_ Em dinheiro? Nada!
sexta-feira, 29 de maio de 2009
quarta-feira, 20 de maio de 2009
AMOR DE SAMAMBAIA
Morava no subúrbio, numa casa onde de bonito só a varanda. Apesar de pequena e sem graça, como o resto da casa, a varanda tinha um encanto: as samambaias. Verdes, saudáveis, as folhas longas escondiam o feio das paredes. As samambaias eram o orgulho da dona da casa.
Trabalhava numa confecção, num bairro chique, do outro lado da cidade. Todas as manhãs, levantava-se com a mesma disposição do dia, a de cumprir sua função na vida. Tomava um ônibus até o centro e outro até à confecção. Chegava, sentava-se à máquina de costura, recebia os tecidos já cortados e costurava. Ao seu comando, a linha seguia reta, sem um desvio sequer. Sem desvios também era o seu pensamento. O caminho de volta. A vida.
Chegava. Era a hora de que mais gostava. Levava o regador para a varanda. Acercava-se das samambaias e começava o ritual. Acariciava as folhas, passava-as pelo rosto, sussurrava intimidades. Como uma amante ao ouvido do amado. Era o mesmo com todas elas. Era sempre o mesmo. Sempre a mesma.
Um dia, alguém chegou. Assim como o dia chega. Sem sobressaltos. Magro. Tímido. Bateu à porta, pediu um copo d’água. Ficou na sede dela. Como ele era sem eira nem beira, ela continuou trabalhando. A única coisa que mudou foi o ritual das samambaias. Mal, mal, um copo d’água, todas as noites, no verão. No inverno, só três vezes por semana. Agora ela sussurrava em outros ouvidos. Foi assim até que...
Foi num dia em que ele fizera o que sempre fazia. E gostava. A mulher acabara de sair. Era a hora da esposa. Saiu à varanda, o sorriso de todos os dias. Postou-se entre as samambaias. Aspirou o ar da noite. Sentiu o quanto a vida era boa. Sentiu que algo lhe acariciava o pescoço. Uma folha. Estava em paz com a vida. Gostou da carícia. Sentiu cócegas. Tentou afastar a folha. Não conseguiu. A pressão cada vez mais forte. Ele sentindo-se cada vez mais preso. De repente, eram vários tentáculos verdes a asfixiá-lo, sugando-lhe a vida, levando-o ao desespero, tirando-lhe as forças. Resistiu até que...
Ela chegou. Estranhou. Ele não estava à porta. O sorriso não esperava por ela. Entrou. Saiu. Chamou. Procurou. Engraçado! Parou. Reparou. Na varanda, uma samambaia nova. Verde. Bonita. Saudável. As folhas escondendo o feio das paredes. Mas como? Ela não havia mais comprado samambaia desde que ele chegara!
quarta-feira, 13 de maio de 2009
CONTOS DE UM DIA SÓ - 2
Naquele dia, o espelho tinha tudo para refletir a mesma imagem. Olhos tristes, boca amarga, corpo cansado.
Naquele dia, ele tinha tudo para fazer o mesmo. Acordar tarde, perambular pelos bares, voltar, almoçar, dormir a sesta. Jantar. Beber. Bater.
Aquele dia tinha tudo para terminar igual. Sexo apressado. Ronco pesado.
Mas...
Naquele dia, ela não foi a mesma, ele não fez o mesmo.
Aquele dia virou noite. E foi parar nos jornais.
terça-feira, 5 de maio de 2009
A VELHA IMAGEM
Foi a primeira vez que a vi. Segurava uma trouxa tão ou mais imunda que ela. Uma confusão de panos cobriam-lhe o corpo confundindo-se com o sujo da pele. Ela, mais que andava, bamboleava. E falava. Falava e bamboleava.
Passou como se não me visse. Da janela, eu a olhava. Imaginava as histórias por detrás da imagem. Passou por mim com a altivez dos excluídos. Não me devia nada. Desapareceu no final da rua.
Já a imagem distante das minhas lembranças, tornei a vê-la. Altiva, desobrigada, sem compromissos. E sem roupas. Na torneira do posto de gasolina, ela, nua em pelo, a água fria escorrendo pelo corpo. Ao redor, nós, os outros, no calor do meio-dia de um tórrido verão. Nós, os de roupas. Os obrigados. Os compromissados. Nós, os deste mundo. Um mundo que ela, há muito, já havia deixado.
Apesar do aparente escândalo, ninguém tinha coragem de interromper o banho. A água fria deslizando pelo corpo nu lavava a sujeira . Mais do que do corpo nu, a água fria lavava a alma dos pobres mortais aglomerados, reclamando uma nesga da cena. A mulher nua na torneira do posto de gasolina era a vingança. Vingança contra a vida que exige reserva, vergonha, pudor. Que obriga, oprime. Que leva sem pedir licença. Risos disfarçados, sorrisos amarelos, riso escancarado, caramba, cruz credo, sinal da cruz, um virge Maria escandalizado. Mas todos ali.
Já o banho terminava quando a polícia chegou. A mulher acabava de se vestir. Apanhou a trouxa, seguiu o policial. Era a estrela escoltada pelos seguranças, protegida do assédio dos fãs. A viatura deu a partida e a levou. A multidão foi se dispersando, a vida retomava seu curso.
Eu também tinha um mundo a me cobrar presença e trabalho. A cabeça, porém, ficara na viatura. Qual seria a história por detrás da imagem?
A vida passava, sem nudez e sem graça, quando a vi pela terceira vez. Filho e mãe à janela. Ele, criança de uns dois anos. Ela, a que bamboleava e falava, falava e bamboleava.
Passou. Passou e voltou. Postou-se frente ao menino, olhos nos olhos. Ele sorriu. Para meu espanto, vislumbrei o início de um sorriso como resposta. Depois do início, o sorriso aberto. Foi só um instante. Mas foi o bastante. Naquele instante, tive todas as minhas respostas. Ela bamboleou e andou. Esta foi a última vez que a vi. Ou teria sido a primeira?
domingo, 26 de abril de 2009
CONTOS DE UM DIA SÓ - 1
domingo, 19 de abril de 2009
MATILDA
Matilda era assim. Sem jeito. Corpo mirrado. As pernas finas, meio cambotas, quase escondidas nas saias compridas e desajeitadas. Os seios eram pequenas protuberâncias, quase invisíveis nas blusas largas e de corte irregular. Nada em Matilda chamava a atenção. Nada, a não ser os cabelos. Macios, sedosos e dourados, os cabelos de Matilda alimentavam a inveja das mulheres. Os cabelos contrastavam com o sem jeito de Matilda. Doce, quieta e tranqüila. Assim as vizinhas definiram Matilda quando perguntadas sobre ela. Se morava sozinha? Sempre, depois que o pai e a mãe morreram. Primeiro a mãe, depois o pai. Matilda saía pouco, sim, apenas para comprar o necessário. Se as vizinhas notaram alguma modificação no comportamento de Matilda? É, houve um dia em que Matilda passou e não deu bom-dia. Mas não foi só isso, lembrou outra vizinha. Elas notaram que as pernas de Matilda pareciam mais longas. Não eram as pernas, lembra? Era a saia que estava mais curta! E a blusa, a vizinha não lembra? A blusa estava mais colada ao corpo. Elas até comentaram que os seios de Matilda não eram tão pequenos assim! Houve risos mal disfarçados. Ninguém sabia dizer, não, senhor. Vigiar elas vigiavam, afinal, ali todas se conheciam e se gostavam. Se gostavam até demais, emendou o marido, se gostavam tanto que ninguém fugia da vista delas. Nem da língua, emendou um outro. O caso não é de rir, não senhor, foi até muito triste. Na noite anterior, a vizinha vira Matilda sair sozinha. Claro que ela estranhou! Se havia um homem? Ninguém sabia dizer, não senhor. Se tivesse ela saberia, moravam parede e meia, falava lá, escutava aqui. Naquela noite, a vizinha não escutara Matilda chegar. Pensou até em ir à casa dela no dia seguinte. Mas não teve tempo. É que tinha ido à padaria e o jornal estava lá. Tinha a foto de uma mulher meio sem jeito e a foto era meio sem cor, foto mesmo de jornal. Mas foram os cabelos que chamaram a atenção. Ah, seu moço, eu conheceria aquele cabelo em qualquer lugar. Depois, tinha o nome: Matilda. E lá estava ela. Comprei o jornal, sim, levei pra casa. Foi assim que os outros ficaram sabendo. Tá certo, se soubessem de mais alguma coisa, ligariam sim. Ligar? Ah, sim, vá esperando! A santinha do pau oco enganara todas elas. Tinha um homem! Tanta mulher querendo! E a sem jeito, a desenxabida tinha um. Matilda, quem diria! Bem se diz “boi sonso a marrada é certa”. E bota marrada nisso, seu moço!
A IMAGEM DO CONTO
E assim ficamos eu, ele e o projeto “A IMAGEM DO CONTO”. Aqui, o visitante encontrará, todas as semanas, um novo conto. De antemão, um aviso: sou extremamente cotidiana. Feito comida no prato. Ele? Ah! Ele eu não sei, minha função é de escrever. A dele, a de me surpreender. Pois não é que sempre ele encontra um jeito novo de contar as minhas palavras? Eu sou eu no texto. Ele é ele nas ilustrações. Como ele mesmo já me escreveu: “... o caminho de quem desenha não coincide – visto ser paralelo – com o de quem escreve, deve o ilustrador emprestar à obra a parte da sua alma que lhe pertence. “
E assim, ficamos nós: eu, ele e você, nosso visitante. As palavras são parte da minha alma. Os desenhos, parte da alma do ilustrador. Cabe a você que nos visita acrescentar parte da sua alma neste site.
Frederico Rocha – filho e ilustrador