sexta-feira, 29 de maio de 2009

CONTOS DE UM DIA SÓ . 3



Ela era esbelta. Vaidosa. Casou-se. Um dia, dormiu e acordou gorda, muito gorda.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

AMOR DE SAMAMBAIA



Morava no subúrbio, numa casa onde de bonito só a varanda. Apesar de pequena e sem graça, como o resto da casa, a varanda tinha um encanto: as samambaias. Verdes, saudáveis, as folhas longas escondiam o feio das paredes. As samambaias eram o orgulho da dona da casa.

Trabalhava numa confecção, num bairro chique, do outro lado da cidade. Todas as manhãs, levantava-se com a mesma disposição do dia, a de cumprir sua função na vida. Tomava um ônibus até o centro e outro até à confecção. Chegava, sentava-se à máquina de costura, recebia os tecidos já cortados e costurava. Ao seu comando, a linha seguia reta, sem um desvio sequer. Sem desvios também era o seu pensamento. O caminho de volta. A vida.

Chegava. Era a hora de que mais gostava. Levava o regador para a varanda. Acercava-se das samambaias e começava o ritual. Acariciava as folhas, passava-as pelo rosto, sussurrava intimidades. Como uma amante ao ouvido do amado. Era o mesmo com todas elas. Era sempre o mesmo. Sempre a mesma.

Um dia, alguém chegou. Assim como o dia chega. Sem sobressaltos. Magro. Tímido. Bateu à porta, pediu um copo d’água. Ficou na sede dela. Como ele era sem eira nem beira, ela continuou trabalhando. A única coisa que mudou foi o ritual das samambaias. Mal, mal, um copo d’água, todas as noites, no verão. No inverno, só três vezes por semana. Agora ela sussurrava em outros ouvidos. Foi assim até que...

Foi num dia em que ele fizera o que sempre fazia. E gostava. A mulher acabara de sair. Era a hora da esposa. Saiu à varanda, o sorriso de todos os dias. Postou-se entre as samambaias. Aspirou o ar da noite. Sentiu o quanto a vida era boa. Sentiu que algo lhe acariciava o pescoço. Uma folha. Estava em paz com a vida. Gostou da carícia. Sentiu cócegas. Tentou afastar a folha. Não conseguiu. A pressão cada vez mais forte. Ele sentindo-se cada vez mais preso. De repente, eram vários tentáculos verdes a asfixiá-lo, sugando-lhe a vida, levando-o ao desespero, tirando-lhe as forças. Resistiu até que...

Ela chegou. Estranhou. Ele não estava à porta. O sorriso não esperava por ela. Entrou. Saiu. Chamou. Procurou. Engraçado! Parou. Reparou. Na varanda, uma samambaia nova. Verde. Bonita. Saudável. As folhas escondendo o feio das paredes. Mas como? Ela não havia mais comprado samambaia desde que ele chegara!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

CONTOS DE UM DIA SÓ - 2




Naquele dia, ela tinha tudo para ser a mesma. Copeira, arrumadeira, cozinheira. Provedora. Sofredora.
Naquele dia, o espelho tinha tudo para refletir a mesma imagem. Olhos tristes, boca amarga, corpo cansado.
Naquele dia, ele tinha tudo para fazer o mesmo. Acordar tarde, perambular pelos bares, voltar, almoçar, dormir a sesta. Jantar. Beber. Bater.
Aquele dia tinha tudo para terminar igual. Sexo apressado. Ronco pesado.
Mas...
Naquele dia, ela não foi a mesma, ele não fez o mesmo.
Aquele dia virou noite. E foi parar nos jornais.

terça-feira, 5 de maio de 2009

A VELHA IMAGEM




Foi a primeira vez que a vi. Segurava uma trouxa tão ou mais imunda que ela. Uma confusão de panos cobriam-lhe o corpo confundindo-se com o sujo da pele. Ela, mais que andava, bamboleava. E falava. Falava e bamboleava.
Passou como se não me visse. Da janela, eu a olhava. Imaginava as histórias por detrás da imagem. Passou por mim com a altivez dos excluídos. Não me devia nada. Desapareceu no final da rua.
Já a imagem distante das minhas lembranças, tornei a vê-la. Altiva, desobrigada, sem compromissos. E sem roupas. Na torneira do posto de gasolina, ela, nua em pelo, a água fria escorrendo pelo corpo. Ao redor, nós, os outros, no calor do meio-dia de um tórrido verão. Nós, os de roupas. Os obrigados. Os compromissados. Nós, os deste mundo. Um mundo que ela, há muito, já havia deixado.
Apesar do aparente escândalo, ninguém tinha coragem de interromper o banho. A água fria deslizando pelo corpo nu lavava a sujeira . Mais do que do corpo nu, a água fria lavava a alma dos pobres mortais aglomerados, reclamando uma nesga da cena. A mulher nua na torneira do posto de gasolina era a vingança. Vingança contra a vida que exige reserva, vergonha, pudor. Que obriga, oprime. Que leva sem pedir licença. Risos disfarçados, sorrisos amarelos, riso escancarado, caramba, cruz credo, sinal da cruz, um virge Maria escandalizado. Mas todos ali.
Já o banho terminava quando a polícia chegou. A mulher acabava de se vestir. Apanhou a trouxa, seguiu o policial. Era a estrela escoltada pelos seguranças, protegida do assédio dos fãs. A viatura deu a partida e a levou. A multidão foi se dispersando, a vida retomava seu curso.
Eu também tinha um mundo a me cobrar presença e trabalho. A cabeça, porém, ficara na viatura. Qual seria a história por detrás da imagem?
A vida passava, sem nudez e sem graça, quando a vi pela terceira vez. Filho e mãe à janela. Ele, criança de uns dois anos. Ela, a que bamboleava e falava, falava e bamboleava.
Passou. Passou e voltou. Postou-se frente ao menino, olhos nos olhos. Ele sorriu. Para meu espanto, vislumbrei o início de um sorriso como resposta. Depois do início, o sorriso aberto. Foi só um instante. Mas foi o bastante. Naquele instante, tive todas as minhas respostas. Ela bamboleou e andou. Esta foi a última vez que a vi. Ou teria sido a primeira?