terça-feira, 5 de maio de 2009

A VELHA IMAGEM




Foi a primeira vez que a vi. Segurava uma trouxa tão ou mais imunda que ela. Uma confusão de panos cobriam-lhe o corpo confundindo-se com o sujo da pele. Ela, mais que andava, bamboleava. E falava. Falava e bamboleava.
Passou como se não me visse. Da janela, eu a olhava. Imaginava as histórias por detrás da imagem. Passou por mim com a altivez dos excluídos. Não me devia nada. Desapareceu no final da rua.
Já a imagem distante das minhas lembranças, tornei a vê-la. Altiva, desobrigada, sem compromissos. E sem roupas. Na torneira do posto de gasolina, ela, nua em pelo, a água fria escorrendo pelo corpo. Ao redor, nós, os outros, no calor do meio-dia de um tórrido verão. Nós, os de roupas. Os obrigados. Os compromissados. Nós, os deste mundo. Um mundo que ela, há muito, já havia deixado.
Apesar do aparente escândalo, ninguém tinha coragem de interromper o banho. A água fria deslizando pelo corpo nu lavava a sujeira . Mais do que do corpo nu, a água fria lavava a alma dos pobres mortais aglomerados, reclamando uma nesga da cena. A mulher nua na torneira do posto de gasolina era a vingança. Vingança contra a vida que exige reserva, vergonha, pudor. Que obriga, oprime. Que leva sem pedir licença. Risos disfarçados, sorrisos amarelos, riso escancarado, caramba, cruz credo, sinal da cruz, um virge Maria escandalizado. Mas todos ali.
Já o banho terminava quando a polícia chegou. A mulher acabava de se vestir. Apanhou a trouxa, seguiu o policial. Era a estrela escoltada pelos seguranças, protegida do assédio dos fãs. A viatura deu a partida e a levou. A multidão foi se dispersando, a vida retomava seu curso.
Eu também tinha um mundo a me cobrar presença e trabalho. A cabeça, porém, ficara na viatura. Qual seria a história por detrás da imagem?
A vida passava, sem nudez e sem graça, quando a vi pela terceira vez. Filho e mãe à janela. Ele, criança de uns dois anos. Ela, a que bamboleava e falava, falava e bamboleava.
Passou. Passou e voltou. Postou-se frente ao menino, olhos nos olhos. Ele sorriu. Para meu espanto, vislumbrei o início de um sorriso como resposta. Depois do início, o sorriso aberto. Foi só um instante. Mas foi o bastante. Naquele instante, tive todas as minhas respostas. Ela bamboleou e andou. Esta foi a última vez que a vi. Ou teria sido a primeira?

12 comentários:

  1. Gostei do conto....gostei da imagem.......... gostei da velha imagem. Atemporal e abrangente....
    enxergo os pensonagens em minha mente, enxergo o tempo passar, ou não????????
    A ilustração na mão leve do traço, no preto e branco, trás a atmosfera do texto........

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  2. Soy un lector español y ha caido en mis manos este blog.
    Estoy aprendiendo portugués y es una delicia el poder aprender un idioma en manos de una buena escritora y de paso, ver y disfrutar de grandes ilustraciones.
    Muchas gracias y espero volver a leer una historia nueva pronto... la próxima vez, escribiré en portugués.
    C.

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  3. Rudolfo! Você diz "...enxergo os personagens [...], enxergo o tempo...". Com este comentário, você nos dá a certeza de que palavra e imagem cumpriram a sua função. Obrigado pelo incentivo sempre presente.

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  4. Carlos! Bom que o blog "caiu em suas mãos..."- estou ousando traduzir suas palavras. Acredito, porém, que a ousadia não me traiu na emoção de saber que minhas palavras estão servindo à aprendizagem da Língua de que tanto gosto. E por ter um leitor tão sensível. Agradecemos os elogios tão incentivadores.

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  5. Olá D. Tania!!
    Folgo em matar saudades através da sua escrita...mm que não directa para mim!!! Eheheh

    Um beijo luso

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  6. Oi, Nuno!!! Bom saber de você! Saudades!!! Apareça sempre. Beijos bem brasileiros - mineiríssimos - para você.

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  7. Oi Tia e Fred!!!!
    Para mim esta sendo um prazer imenso fazer parte deste blog. Adorei particularmente este conto. Um grande beijo aos dois!!!!

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  8. TÂNIA VOCÊ PODE SER UMA ESCRITORA DE SUCESSO!!!!!!!!

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  9. TEM PESSOAS QUE NASCEM PARA BRILHAR E VOCÊ É UMA DELAS!!!

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  10. Muito bom saber que você está gostando do blog, Flávia. Melhor ainda quando você aponta sua preferência, sinal de que é uma leitora apurada.
    Esperamos a sua visita......sempre!!!
    Abraços.

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  11. Matheus! Vou me empenhar para que sua opinião torne-se, realmente, uma realidade.
    Abraços!!!

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  12. Obrigada, Gabi! Se brilhar é escrever contos para que sejam lidos e apreciados por pessoas como você, então, quero brilhar muito.
    Abraços!!!

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