domingo, 14 de junho de 2009
CÁFTEN - 1
A primeira vez que o vi foi num dos pontos onde sou mais vulnerável. Ele desceu do ônibus. Percebi logo a que viera, já estava acostumada a ler os olhos de quem chega. Recebi-o como sempre recebo todos. Alguns chamam a isso de disfarce. Eu chamo de dicotomia. Encanto e medo. Sou isso.
Deu alguns passos, sondou o ambiente. Saiu dos corredores lotados e se aventurou. Tudo nele denunciava a origem. Gestos, olhares, bagagem. O sol batendo forte no rosto, ousou levantar os ombros e se convencer de coragem. Ao descer da calçada, um carro em alta velocidade quase o arrasta. Recuou. Envergonhou-se. Olhou para os lados sem jeito.
Era preciso ir. E ele foi. Fui com ele. Confesso que estava intrigada. Havia-lhe nos olhos algo que raramente eu via nos olhos dos tantos milhares que chegavam. E ainda chegariam. Tinha certeza, aquele era diferente. Estava curiosa.
Tirou um papelzinho do bolso. Leu. Olhou em torno. A placa estava ali, visível: Pensão Rodoviária. O familiar acendeu-lhe um brilho tímido nos olhos. Sentiu-se em casa. Entrou.
O homem do balcão recebeu-o enfastiado. Conversa rápida, deu-lhe a chave e ele subiu a escada. Alívio. O quarto pequeno, cama, armário, uma cadeira. Não reparou a sujeira, a poeira, a cupinzada comendo a madeira caindo de velha. Era a primeira vez que se via fora de casa. Agora dentro.
Descansou por algumas horas, a cabeça na saudade, no medo, na esperança. Acabou dormindo de cansado que estava. A noite chegou e ele resolveu dar uma volta. Antes, tomou um banho no banheiro no fundo do corredor. Água quente, queimando de tão pouca. Trocou a roupa de viagem. Ele nunca vira tanta gente junta. Tanta luz a doer-lhe os olhos. Ali perto, uma carrocinha de cachorro-quente atiçou-lhe a fome, lembrou-se de que estava sem comer há horas. O engulho no estômago havia cessado. Enfiou a mão no bolso. Apalpou. A carteira devia estar ali. Mas onde? No bolso de trás, filho, coloque no bolso de trás que é lugar apertado e tem botão.Ele deu falta do botão e da carteira. Com ela, dinheiro, documentos, endereços. O engulho no estômago voltou, desta vez mais forte. Agora era a fome, a raiva, o desespero. Como pagaria o quarto? O que comeria? Onde dormiria?
Poucas vezes li o que li nos olhos dele. Acompanhei-o na perambulação a esmo. Tantos voltariam à pensão, explicariam, tentariam. Mas ele não, ele apenas rodou à toa, feito bicho acuado. Naquela noite, dormiu com fome. Eu o acolhi da melhor maneira, ofereci-lhe meus lugares mais seguros, mais resguardados. Foi só um tempo. Alguns dias. No dia seguinte a alguns dias de fome, frio e raiva, ele notou a primeira mulher escorada num poste. Percebeu-lhe a intenção. Chegou-se. Essa foi a primeira. Depois dessa, a segunda...a terceira...a quarta...
Foram muitas. E ainda são. Mas a melhor, a mais desejada, a mais rentável sou eu. Isso porque ele ainda não me conquistou totalmente.
Não lhes disse que ele era diferente? Nunca me engano quando leio os olhos de quem me procura.
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Voltando, como o prometido. Mas não porque havia prometido, e sim porque gostei daqui de verdade. Teus contos são muito belos e gostosos.
ResponderEliminarOlá, Felipe! Bom que você voltou. Melhor ainda saber que você gosta tanto dos meus contos. Mais que um elogio, seus comentários são um incentivo e tanto. Obrigada, em meu nome e no nome do ilustrador. E volte a cada domingo.
ResponderEliminarEste teu conto ainda tem uma relação óbvia a meus olhos, entre os fatos e o final, mas já entra numa linha obscura como na "Na noite eterna"onde não tenho capacidade de desvendar o final e fico no ar...............bom não saber o que pensar e dizer....................
ResponderEliminarRudolfo, nem sempre precisamos saber o que pensar. Nem o que dizer. Apenas sentir. E sentir dispensa qualquer obrigatoriedade de exteriorização. É como você diz "...bom não saber o que pensar e dizer..." Obrigada!!!
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