A luz penetrava através de uma fresta e um raio incidia diretamente sobre a sua cabeça que, longe de encontrar o repouso necessário, teimava em voltar às lembranças de um passado morto, mas nunca enterrado. Para piorar, fazia um calor terrível e alguns bichinhos incômodos insistiam em lhe percorrer o corpo, causando-lhe cócegas e comichões. Tentou afastá-los, mas os braços, pesados, recusaram- se a ajudá-lo. Pensou em fechar os olhos bem forte quando percebeu que estes já estavam fechados, as pálpebras imóveis, sem um tremorzinho sequer. Achou que a madrugada ia avançada e que logo amanheceria sem que ele tivesse adormecido. Já estava pensando em se levantar, ir até à cozinha, tomar algo, quem sabe um copo de leite quente, um chá de camomila, ou mesmo um copo d’água, quando ouviu vozes. Coloque aqui mesmo, assim está bom, dizia uma voz feminina. Ainda estava pensando naquela voz, como sendo de alguém conhecido, quando sentiu uma dor nas costas, como se tivesse caído em algo duro. Não era de hoje que estava precisando deixar a preguiça de lado e procurar um ortopedista, as dores o estavam incomodando cada vez mais e ele naquela de deixar pra lá. Aquietou-se, tentou novamente deixar que o silêncio da noite o envolvesse, procurou afastar os pensamentos incômodos, deixou as mãos juntinhas, uma sobre a outra, as pernas espichadas, os pés voltados para o teto, numa posição que, segundo lhe ensinaram, era propícia ao descanso e ao sono. Estava tão quieto que nem respirava. Ficou assim, imóvel, por um bom tempo, sentindo o silêncio da noite, esperando a hora bendita em que todos os sentidos se recolhem, restando ao corpo entregar-se aos braços de Morfeu. O último ato consciente veio do olfato. Um cheiro de flor invadiu o ambiente e fez com que ele se lembrasse do pé de dama-da-noite, plantado no quintal da casa. Não durou muito e ele já estava sonhando, um sonho estranho como costuma ser a maioria dos sonhos. Sonhou que o filho mais velho abria a porta e dava-lhe um beijo na testa, enquanto algumas pessoas observavam a cena, entre elas amigos e vizinhos. Viu a filha sentada numa cadeira, a observá-lo, como, ainda menina, o fizera naquela noite que ele preferia esquecer e que fazia parte do passado morto, mas nunca enterrado. A filha era parte das lembranças que não o deixavam dormir em paz. Sentiu vontade de ir até ela, abraçá-la, mesmo sabendo que ela se encolheria, como um bichinho indefeso se encolhe diante do predador. Não teve tempo para o abraço, pois a figura da filha foi-se distanciando, dando lugar a uma procissão de figuras, algumas estranhas, outras não tanto, entre elas, duas que lhe pareceram familiar. Aproximou-se. Na frente da procissão, o pai o olhava como se o estivesse esperando. Atrás dele, a mãe, com os braços pendendo ao lado do corpo e um olhar que ele conhecia muito bem. Aquele olhar tinha o poder de fazê-lo se encolher como uma presa frágil diante do predador. Fez força para acordar, uma vontade imensa de voltar à realidade onde ele sabia poder controlar os fantasmas. Ao invés disso, continuava ali, parado, o corpo se recusando a qualquer movimento. Está na hora, disse alguém e ele procurou de onde vinha a voz, devia ser de alguém na procissão. As pessoas começaram a andar, e ele ali, esperando, desta vez deitado de costas, as mãos juntinhas, uma sobre a outra, os pés voltados para o alto, tão quieto que nem respirava. Foi quando sentiu que caía cada vez mais fundo, mais fundo, como naqueles pesadelos que costumava ter quando criança e acordava todo molhado de suor e de urina. Ouvia o som de algo sendo jogado sobre ele, uma, duas, três, quatro vezes, até perder a conta. A escuridão envolveu-o por completo. Como quem acorda de um pesadelo, ele conseguiu levantar-se e, num último esforço, alcançou a procissão que, em silêncio, seguia para um lugar que ele nem imaginava qual seria.
domingo, 21 de junho de 2009
NA NOITE ETERNA
A luz penetrava através de uma fresta e um raio incidia diretamente sobre a sua cabeça que, longe de encontrar o repouso necessário, teimava em voltar às lembranças de um passado morto, mas nunca enterrado. Para piorar, fazia um calor terrível e alguns bichinhos incômodos insistiam em lhe percorrer o corpo, causando-lhe cócegas e comichões. Tentou afastá-los, mas os braços, pesados, recusaram- se a ajudá-lo. Pensou em fechar os olhos bem forte quando percebeu que estes já estavam fechados, as pálpebras imóveis, sem um tremorzinho sequer. Achou que a madrugada ia avançada e que logo amanheceria sem que ele tivesse adormecido. Já estava pensando em se levantar, ir até à cozinha, tomar algo, quem sabe um copo de leite quente, um chá de camomila, ou mesmo um copo d’água, quando ouviu vozes. Coloque aqui mesmo, assim está bom, dizia uma voz feminina. Ainda estava pensando naquela voz, como sendo de alguém conhecido, quando sentiu uma dor nas costas, como se tivesse caído em algo duro. Não era de hoje que estava precisando deixar a preguiça de lado e procurar um ortopedista, as dores o estavam incomodando cada vez mais e ele naquela de deixar pra lá. Aquietou-se, tentou novamente deixar que o silêncio da noite o envolvesse, procurou afastar os pensamentos incômodos, deixou as mãos juntinhas, uma sobre a outra, as pernas espichadas, os pés voltados para o teto, numa posição que, segundo lhe ensinaram, era propícia ao descanso e ao sono. Estava tão quieto que nem respirava. Ficou assim, imóvel, por um bom tempo, sentindo o silêncio da noite, esperando a hora bendita em que todos os sentidos se recolhem, restando ao corpo entregar-se aos braços de Morfeu. O último ato consciente veio do olfato. Um cheiro de flor invadiu o ambiente e fez com que ele se lembrasse do pé de dama-da-noite, plantado no quintal da casa. Não durou muito e ele já estava sonhando, um sonho estranho como costuma ser a maioria dos sonhos. Sonhou que o filho mais velho abria a porta e dava-lhe um beijo na testa, enquanto algumas pessoas observavam a cena, entre elas amigos e vizinhos. Viu a filha sentada numa cadeira, a observá-lo, como, ainda menina, o fizera naquela noite que ele preferia esquecer e que fazia parte do passado morto, mas nunca enterrado. A filha era parte das lembranças que não o deixavam dormir em paz. Sentiu vontade de ir até ela, abraçá-la, mesmo sabendo que ela se encolheria, como um bichinho indefeso se encolhe diante do predador. Não teve tempo para o abraço, pois a figura da filha foi-se distanciando, dando lugar a uma procissão de figuras, algumas estranhas, outras não tanto, entre elas, duas que lhe pareceram familiar. Aproximou-se. Na frente da procissão, o pai o olhava como se o estivesse esperando. Atrás dele, a mãe, com os braços pendendo ao lado do corpo e um olhar que ele conhecia muito bem. Aquele olhar tinha o poder de fazê-lo se encolher como uma presa frágil diante do predador. Fez força para acordar, uma vontade imensa de voltar à realidade onde ele sabia poder controlar os fantasmas. Ao invés disso, continuava ali, parado, o corpo se recusando a qualquer movimento. Está na hora, disse alguém e ele procurou de onde vinha a voz, devia ser de alguém na procissão. As pessoas começaram a andar, e ele ali, esperando, desta vez deitado de costas, as mãos juntinhas, uma sobre a outra, os pés voltados para o alto, tão quieto que nem respirava. Foi quando sentiu que caía cada vez mais fundo, mais fundo, como naqueles pesadelos que costumava ter quando criança e acordava todo molhado de suor e de urina. Ouvia o som de algo sendo jogado sobre ele, uma, duas, três, quatro vezes, até perder a conta. A escuridão envolveu-o por completo. Como quem acorda de um pesadelo, ele conseguiu levantar-se e, num último esforço, alcançou a procissão que, em silêncio, seguia para um lugar que ele nem imaginava qual seria.
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A visualização ou interpretação de teus textos iniciais, para mim tinham um sentido linear que se desenhava na leitura do texto. Sinto agora, nestes teus ultimos dois contos, uma densidade que me impede de ter este raciocicio, pois a densidade e inumeras menções de detalhes me deixam sem resposta e sem saber qual a resposta final do conto......me sinto impotente em ter uma ideia final..........magistral teu conto..........
ResponderEliminarEm primeiro lugar, obrigada pelo "magistral". É muito bom constatar que você não se limita a ler os contos, mas a precebê-los nos detalhes - como você mesmo o diz - na sua densidade. Continue sendo o leitor atento e assíduo, isso muito nos lisonjeia, a mim e ao ilustrador.
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